Dopping — o programa de armamento de Bruxelas

Carlos Matos Gomes
6 min readMar 3, 2024

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O que faz um atleta que entrou em decadência para tentar manter-se em competição? Droga-se! Injeta ou toma produtos que lhe dão a sensação de força e euforia, mas que a prazo mais ou menos curto lhe arruínam os órgão vitais e as suas capacidades de sobrevivência. Entra em ressaca.

O programa armamentista proposto pela comissão europeia presidida por Úrsula Von Der Leyen é uma proposta de dopping para a Europa acreditar que ainda tem um papel de relevo na competição pelo poder mundial. É um estímulo de efeito imediato, que se extinguirá e com ele o “atleta”. Restará um farrapo!

A referência para esta visão desencantada é o artigo: “A Europa entra em estado de pé de guerra” , do El País de 3 de Março de 2024, de que deixarei o link no final.

A introdução do artigo justifica a opção da União Europeia pelo pé de guerra com a “dissuasão de Putin de iniciar uma nova agressão e de garantir a sua autonomia num mundo turbulento”. São duas falácias numa frase: a invasão da Ucrânia foi um ato deliberadamente provocado pelo “Ocidente”, a Ucrânia não é para a Rússia comparável com qualquer outro estado europeu; e a União Europeia não dispõe de qualquer autonomia e nunca dispôs. A Europa do pós-guerra foi um estado vassalo, metade dos Estados Unidos e metade da antiga URSS. Argumentar com estas duas justificações: o perigo da invasão russa e a autonomia europeia é atentar contra a capacidade de julgamento dos europeus e dos seus maiores ou menores conhecimentos da sua História. Há os que aceitam os argumentos, mas fazem-no por fé e não pela razão.

Há um terceiro argumento para o dopping armamentista da Europa após mais de 60 anos em que os Estados Unidos impediram a construção de um aparelho de força armada comum com a formação (imposição) da NATO, que é ainda mais contraditório que os anteriores: a provável eleição de Trump nosso EUA. Ora Trump demonstrou no primeiro mandato o seu desprezo pela Europa: a Europa não é um jogador do seu campeonato, é irrelevante, acabará sempre por ser uma carta no seu bolso. Pode ter algum interesse como compradora de armas americanas, a par da Arábia Saudita e satisfazer parte da oligarquia americana ligada ao complexo militar-industrial, tradicionalmente votante nos democratas, mas pouco mais do que isso. A consideração dos Estados Unidos pela União Europeia está resumida na célebre frase de Victoria Nuland, “Fuck the EU!”, proferida a 6 de Fevereiro de 2014 enquanto alta representante dos Estados Unidos para a Europa, a propósito do golpe que os EUA estavam a organizar na Ucrânia. Victoria Nuland serviu tanto o regime de Trump como o de Biden e é hoje subsecretária de estado dos negócios estrangeiros de Biden. Para os Estados Unidos os seus homens de mão na Europa são o ingleses (são militares ingleses que estão a dirigir as operações na Ucrânia) — os ingleses são os “gurkas” dos Estados Unidos, enquanto a Alemanha será o financiador e o feitor da propriedade continental europeia.

Importa relembrar que a guerra dos Estados Unidos contra a Rússia — de que a Ucrânia é o pretexto — foi desde o início desenhada como um conflito de desgaste económico da Rússia para a impedir de ser uma alternativa viável à dependência da Europa relativamente aos EUA, de redução de capacidades da Rússia para esta não ser uma aliada decisiva da China, o inimigo principal. Daí que a resposta dos EUA à Rússia após terem provocado a invasão da Ucrânia tenha sido centrada na economia: as célebres sanções económicas em que os Estados Unidos ficaram com os lucros e estão a ficar e a Europa ficou com os prejuízos que vai continuar a acumular, quer através da recessão quer dos défices resultantes da militarização: um soldado é, pegando na ideia de Brecht, um desempregado armado e caro e as compras de material militar serão feitas aos Estados Unidos, que são uma potência nuclear e espacial, o que a Europa não é.

Qual é o programa de armamento e quanto custa? Segundo o artigo do El País, em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia, os aliados europeus da NATO gastaram 216. 8000 milhões de Euros, 1,47% do seu PIB. Em 2023, os gastos subiram para 347.000 milhões (ambos calculados a preços constantes de 2015), equivalentes a 1,85% do PIB. Para 2024 prevêem-se gastos de 380.000 milhões, cerca de 2%, do PIB e isto segundo dados da própria NATO. Tudo aponta para que os gastos continuem a subir. A NATO (leia-se os Estados Unidos) pretende que os 2% dos gastos em despesas militares sejam o patamar mínimo e não o máximo.

Desde 2022 que a U E financia a Ucrânia com fundos intergovernamentais da ordem dos 35.500 milhões de euros para material militar, o que é superior ao apoio dos Estados Unidos e tem sido empregue em boa parte em compras aos EUA! A Comissão Europa também planeia uma reorientação radical nos seus programas de investimento, com prioridade para as indústrias militares, criação de reservas de munições, de armas e a alteração dos objetivos do Banco Europeu de Investimentos para privilegiar empresas que fabriquem armas e munições em vez de empresas de produtos de duplo uso militar e civil como drones e eletrónica!

O grande problema deste programa belicista (muito parecido com o que ocorreu na Europa a anteceder a I Grande Guerra), de empobrecimento geral é fazê-lo passar junto das opiniões públicas europeias que não viveram nenhuma guerra, e logo num ano de várias eleições importantes, a mais importante das quais nos Estados Unidos. Há que refazer a História, desenvolver um programa de revisionismo histórico. Afirmar que os polacos, que foram invadidos pela Alemanha, se sentem ameaçados pela Rússia! Que os ucranianos que, em boa parte foram nazificados e apoiaram a Alemanha, devem defender-se da Rússia e glorificar os seus heróis nazis. Que os países bálticos que viveram decénios sem ameaças da União Soviética estão agora sob ameaça eminente. Glorificar heróis nazis, reciclados em nacionalistas, caso de Bandera, o herói ucraniano. Trata-se de criar, com a habitual cumplicidade dos grandes órgãos de manipulação (é para isso que as oligarquias investem na sua posse) um ambiente de “aí vem o lobo”, ou o truque do carteirista que avisa da presença de carteiristas na zona para roubar a carteira ao crente, que ainda deve ficar agradecido.

O argumento utilizado é o de que: “se os europeus levarem a sério (se se dispuserem a pagar armas e abdicar do estado social) a questão da defesa, a Rússia não tacará”. E o reconhecimento de que “ a Europa desvalorizou a sua defesa durante 30 anos”. Acontece que o desarmamento europeu foi uma imposição dos Estados Unidos e foi aceite pelos europeus em troca do estado de bem-estar.

Por fim, ninguém diz aos europeus que os gastos militares que os europeus vão pagar a troco de perderem boa parte do estado social é completamente inútil para os fins que são publicitados: defender-se da Rússia. É que a Rússia é uma das grandes potências nucleares (a grande arma da dissuasão) e uma das grandes potências aeroespaciais (determinantes para as tecnologias de informação e condução de operações) e a Europa não é nem uma coisa nem outra e os Estados Unidos jamais permitirão que a Europa se liberte da sua dependência nuclear e espacial, criando um futuro concorrente onde tem um vassalo e um cliente.

Em suma, o programa de armamento que os dirigentes da União Europeia estão a propor aos europeus em nome dos interesses dos Estados Unidos é um programa de dopping que dará aos europeus a sensação de força que se esvairá aos primeiros confrontos com a realidade, deixando os farrapos humanos que vemos nos viciados após as ressacas.

É evidente que estes assuntos não entrarão na campanha para as eleições nacionais e europeias. Quem o fizer será acusado de putinista e russófilo. Viva o dopping!

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Carlos Matos Gomes
Carlos Matos Gomes

Written by Carlos Matos Gomes

Born 1946; retired military, historian

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